Roteiro 1 - O contexto histórico do século XIX na Europa
O século XIX representou uma dessas épocas em que fomos especialmente abençoados pela bondade superior, a despeito de todas as dificuldades assinaladas nesse período. Além das enormes contribuições culturais recebidas, fomos imensamente distinguidos pelo advento do Espiritismo, materializado no mundo físico pelo trabalho inestimável do professor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail que, ao codificar a Doutrina Espírita, adotou o pseudônimo de Allan Kardec.
Entretanto, é o século que dá início aos grandes movimentos revolucionários europeus que derrubaram o absolutismo, implantaram a economia liberal e extinguiram o antigo sistema colonial, movimentos esses apoiados nas idéias renovadoras da Filosofia e da Ciência, divulgadas no século XVIII por Espíritos reformadores, denominados iluministas e enciclopedistas. Tais idéias, de acordo com o Espírito Emmanuel, constituíram a base para que fossem combatidos, no século XIX, os [...] erros da sociedade e da política, fazendo soçobrar os princípios do direito divino, em nome do qual se cometiam todas as barbaridades. Vamos encontrar nessa plêiade de reformadores os vultos veneráveis de Voltaire [1694-1778] Montesquieau [1689-1755], Rosseau [1712-1778], D'Alembert[1717-1783], Diderot [1713-1784], Quesnay [1694-1774]. Suas lições generosa repercurtem na América do Norte, como em todo mundo. Entre cintilações do sentimento e do gênio, foram eles os instrumentos ativos do mundo espiritual para regeneração das coletividades terrestres14. Enfatiza, ainda, Emmanuel que [...] foi dos sacrifícios desses corações generosos que se fez a fagulha divina do pensamento e da liberdade, substância de todas as conquistas sociais de que se orgulham os povos modernos14.
Os Estados Unidos foram a primeira nação a absorver efetivamente o pensamento renovador dos iluministas. Assim é que, após alguns incidentes com a metrópole – Grã-Bretanha –, os americanos proclamam a sua independência política, em 4 de julho de 1776, tendo sido organizada, posteriormente, a constituição de Filadélfia, modelo dos códigos democráticos do futuro15.
A independência americana repercutiu intensamente na França, acendendo o [...] mais vivo entusiasmo no ânimo dos franceses, humilhados pelas mais prementes dificuldades, depois do extravagante reinado de Luís XV16 desencadeou-se um poderoso movimento revolucionário em 1789 – a Revolução Francesa –, considerada o marco que separa a Idade Moderna da atual, a Contemporânea. Os sucessivos progressos culturais em todos os campos do saber humano, desencadeados pela Revolução Francesa, foram tão marcantes que o século XIX entrou para a história como sendo o Século da Razão, assim como o século XVIII é denominado o Século das Luzes. No contexto da história da civilização ocidental européia [...] o século XIX, tal como os historiadores o delimitam, ou seja, o período compreendido entre o fim das guerras napoleônicas e o início do primeiro conflito mundial [...], é um dos séculos mais complexos [...]7, marcado por um período de profundas transformações político-sociais e econômicas, as quais tiveram o poder de influenciar gerações posteriores.
1. O contexto histórico europeu do século XIX
1.1 A Revolução Francesa e as suas conseqüências.
No apagar das luzes do século XVIII, a França, uma monarquia governada por Luiz XVI, é ainda um país agrário, com industrialização incipiente. A sociedade francesa está constituída de três grupos sociais básicos: o clero, a nobreza e a burguesia. O clero, cognominado de Primeiro Estado, representava 2% da população total e era isento de impostos. Havia um grande desnível entre o alto clero, de origem nobre e possuidor de grandes rendimentos originários das rendas eclesiásticas, e o baixo clero, de origem plebéia, reduzido à própria subsistência. A nobreza, conhecida como Segundo Estado, fazia parte dos 2,5% de uma população de 23 milhões de habitantes. Não pagava impostos e tinha acesso aos cargos públicos. Subdividia-se em alta nobreza, cujos rendimentos provinham dos tributos senhoriais, das pensões reais e dos cargos na corte; em nobreza rural, que possuía direitos de senhorio e de exploração agrícola, e em nobreza burocrática, de origem burguesa, que ocupava os altos postos administrativos. Cerca de 95% da população – que incluia desde ricos comerciantes até camponeses – formavam o Terceiro Estado, que englobava a burguesia (fabricantes, banqueiros, comerciantes, advogados, médicos), os artesãos, o proletariado industrial e os camponeses. Os burgueses tinham poder econômico, devido, principalmente, às atividades industriais e financeiras. No entanto, igualada ao povo, a burguesia não tinha direito de participação política nem de ascensão social. Foi essa situação que desencadeou uma série de conflitos, que culminaram com a Revolução Francesa, de 14 de julho de 17893.A despeito dos inegáveis benefícios sociais e políticos produzidos pela RevoluçãoFrancesa, entre eles a célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,seguiram-se anos de terror, que favoreceram o golpe de estado executado por Napoleão Bonaparte, no final do século XVIII. Os sublimes ideais da RevoluçãoFrancesa foram desvirtuados, em razão do abuso do poder exercido por aquelesque assumiram o governo do país. Segundo Emmanuel, naqueles anos de terror, a [...] França atraía para si as mais dolorosas provações coletivas nessa torrente de desatinos. Com a influência inglesa, organiza-se a primeira coligação européia contra o nobre país [França]. [...] Também no mundo espiritual reúnem-se os gênios da latinidade, sob a bênção de Jesus, implorando a sua proteção e misericórdia para a grande nação transviada. Aquela que fora a corajosa e singela filha de Domrémy [Joanna D´Arc] volta ao ambiente da antiga pátria, à frente de grandes exércitos de Espíritos consoladores, confortando as almas aflitas e aclarando novos caminhos. Numerosas caravanas de seres flagelados, fora do cárcere material, são por ela conduzidos às plagas da América, para as reencarnações regeneradoras, de paz e deliberdade17. Entre o final do século XVIII e o início do século XIX (
Após Napoleão, a França passa por um novo período de transformações históricas, uma vez que [...] vários princípios liberais da Revolução foram adotados, tais como a igualdade dos cidadãos perante a lei, a liberdade de cultos, estabelecendo- se, a par de todas as conquistas políticas e sociais, um regime de responsabilidade individual no mecanismo de todos os departamentos do Estado. A própria Igreja, habituada a todas as arbitrariedades na sua feição dogmática, reconheceu a limitação dos seus poderes junto das massas, resignando-se com a nova situação19.
O movimento democrático na França mistura política e literatura. Assim, numerosos escritores se engajam na luta política e social, através de suas obras e ação. Desse modo, Lamartine e Víctor Hugo são eleitos deputados, tornando-se o próprio Lamartine – que muito contribuiu para o advento da República – chefe do governo provisório. Muitos desses escritores, como Zola, militam na causa republicana ou socialista8. Sob o regime da Restauração, as questões mais importantes são as de ordem política: o partido liberal exige a aplicação da Carta (Constituição) e um alargamento da liberdade que ela garante. Os liberais, como Stendhal e Paul-Louis Courier, são anticlericais. Chateaubriand torna-se liberal, e prevê o advento da Democracia 9.
1.2 A Revolução Industrial e as suas repercussões
Outra revolução, iniciada na Inglaterra em meados do século XVIII, a Revolução Industrial, acarretou profundas transformações na sociedade, modificando a feição das relações humanas dentro e fora dos países. Serviu de alavanca para o progresso tecnológico que presenciamos nos dias atuais, pela invenção de máquinas e de equipamentos cada vez mais sofisticados. Propiciou o desenvolvimento das relações internacionais, em especial nas áreas econômicas, comerciais e políticas, transformando o mundo numa aldeia global. Conduziu à urbanização de ajuntamentos humanos e à construção de modernos cercamentos (propriedades rurais). Desenvolveu a rede de comunicações de curta e de longa distância, principalmente pelo emprego inteligente da energia elétrica e da eletrônica. Ampliou os meios de transportes, em especial o marítimo e o aéreo. Favoreceu as pesquisas médico-sanitárias voltadas para o controle das doenças epidêmicas, resultando no aumento das faixas da sobrevida humana4
1.3 Manifestações artísticas e culturais do século XIX
As atividades artísticas e culturais do século XIX revelam uma preferência predominantemente romântica. O romantismo influencia as idéias políticas e sociais abraçadas pela burguesia revolucionária da primeira metade do século, associando as manifestações românticas aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. A inspiração do artista romântico era buscada junto das pessoas simples, numa manifestação antielitista e antiaristocrática. Pesquisava-se a cultura popular e o folclore para a produção de pinturas, esculturas e peças musicais. As obras românticas de caráter épico destacam o heroísmo. O ideário artístico estava diretamente relacionado à realidade das lutas políticas e sociais da época: os sacrifícios da população, o sangue derramado nas batalhas e até as dificuldades encontradas nas disputas amorosas5. No que diz respeito à produção literária, sobressai, na Alemanha, o poeta Göethe (1749-1832), que, em Fausto – uma de suas mais importantes obras –, enaltece a liberdade individual, tema repetido em seus demais trabalhos5. Na França, destaca-se a figura de Víctor Hugo, que ocupa lugar excepcional na história das letras francesas. Grande parte de sua obra é popular pelas idéias sociais que difunde, e pelos sentimentos humanos, nobres e simples que ela canta. No livro Napoleão, o Pequeno, Víctor Hugo critica o governo de Napoleão III. Em Os Miseráveis, denuncia, como ninguém até então fizera, o estado de penúria dos pobres13. As artes plásticas, inspiradas no classicismo greco-romano, têm como exemplos mais importantes o Arco do Triunfo e as colunas existentes em Paris, construídas por ordem de Napoleão Bonaparte. Jacques-Louis David (1746-1828) legou à posteridade famoso quadro sobre o assassinato de Jean-Paul Marat, um dos líderes da Revolução Francesa. O pintor francês Eugène Delacroix (1798-1863) – líder do movimento Romântico na pintura francesa – retrata no quadro A Liberdade uma mulher que, segurando a bandeira tricolor francesa, guia o povo nas dramáticas jornadas revolucionárias 5. No campo das composições musicais ocorre uma reviravolta. O virtuosismo do século anterior é substituído por interpretações musicais de forte colorido emocional. A música para os românticos não era só uma obra de arte, mas um meio de comunicação com o estado de alma. Os grandes compositores românticos captam e executam peças musicais que destacam o momento político. Um dos compositores que demonstra de forma notável essa relação é Richard Wagner (1813-1883). A composição musical Lohengrin revela a forte influência dos socialistas utópicos e dos revolucionários da época. Beethoven (1770-1827) homenageia Napoleão Bonaparte em sua Nona Sinfonia. A Rapsódia Húngara, de Liszt (1811-1886), e as Polonaises, de Chopin (1810-1849), são verdadeiros panfletos de manifestações nacionalistas. O nacionalismo, na produção das óperas de Rossini (1792-1868), Bellini (1801-1835) e Verdi (1813-1901), transmite um apelo pungente à unificação da Itália. O surgimento dessa forma de ópera determina a passagem da música de câmara para a música dos grandes teatros, onde um grande número de pessoas poderia ter acesso aos espetáculos artísticos 5. Ao idealismo romântico contrapõe-se o Realismo, que professa o respeito pelos fatos materiais, e estuda o homem segundo o seu comportamento e em seu meio, à luz das teorias sociais ou fisiológicas. Escritores realistas como Stendhal, Balzac, Flaubert, e naturalistas como Zola, escreveram romances com pretensões científicas. Zola imita o método científico experimental do biólogo Claude Bernard10, 12. Na segunda metade do século XIX, a pintura européia passa por uma verdadeira transformação, desencadeada pelo movimento chamado Impressionismo. Os pintores impressionistas procuram captar o cotidiano da vida urbana e do campo, buscando registrar nas telas as impressões dos efeitos da luz sobre a cena desejada. Os pintores mais importantes desse movimento foram Édouard Manet (1832-1883), Claude Monet (1840-1926), Renoir (1841-1920), Cézanne (1839 1906) e Degas (1834-1917)5.
1.4 Manifestações filosóficas, políticas, religiosas, sociais e científicas do século XIX
Para Emmanuel, o [...] campo da Filosofia não escapou a essa torrente renovadora. Aliando-se às ciências físicas, não toleraram as ciências da alma o ascendente dos dogmas absurdos da Igreja. As confissões cristãs, atormentadas e divididas, viviam nos seus templos um combate de morte. Longe de exemplificarem aquela fraternidade do Divino Mestre, entregavam-se a todos os excessos do espírito de seita. A Filosofia recolheu-se, então, no seu negativismo transcendente, aplicando às suas manifestações os mesmos princípios da ciência racional e materialista. Schoupenhauer [1788-1860] é uma demonstração eloqüente do seu pessimismo e as teorias de Spencer [1820-1903] e de Comte [1798-1857] esclarecem as nossas assertivas, não obstante a sinceridade com que foram lançadas no vasto campo das idéias21.
De acordo com o Positivismo de Auguste Comte, a humanidade ultrapassou o estado teológico e o estado metafísico ao penetrar o estado positivo, caracterizado pelo sucesso dos conhecimentos positivos, fundados numa certeza racional e científica. Tais idéias conduzem aos exageros do cientificismo, em que a fé na Ciência se torna a verdadeira fé. Acredita-se que ela vá resolver todos os problemas, elucidar todos os mistérios do mundo; tornar inúteis a religião e a metafísica. Este entusiasmo é revelado na conhecida obra literária de Renan: L´Avenir de la Science (O Futuro da Ciência)12. Em relação às idéias anarquistas e às ideologias socialistas da sociedade da época, essas concepções ainda repercutem nos dias atuais. O Anarquismo, como sabemos, representa um conjunto de doutrinas que preconizam a organização da sociedade sem nenhuma forma de autoridade imposta. Considera o Estado uma força coercitiva que impede os indivíduos de usufruir liberdade plena. A concepção moderna de anarquismo nasce com a Revolução Industrial e com a Revolução Francesa. Em fins do século XVIII, William Godwin (1756-1836) desenvolve o pensamento anárquico, na obra Enquiry Concerning Political Justice. No século XIX surgem duas correntes principais do Anarquismo, de ação marcante na mentalidade dos povos. A primeira encabeçada pelo francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), afirma que a sociedade deve estruturar sua produção e seu consumo em pequenas associações baseadas no auxílio mútuo entre as pessoas. Segundo essa teoria, as mudanças sociais são feitas com base na fraternidade e na cooperação. O russo Mikhail Bakunin (1814-1876) é um dos principais pensadores da outra corrente, também chamada de Coletivismo. Defende a utilização de meios mais violentos nos processos de transformação da sociedade, e propõe a revolução universal sustentada pelos camponeses (campesinato). Afirma que as reformas só podem ocorrer depois que o sistema social existente for destruído. Os trabalhadores espanhóis e italianos são bastante influenciados por Bakunin, mas o movimento anarquista nesses países é esmagado pelo surgimento do Fascismo. O russo Peter Kropotkin (1842-1876) é considerado o sucessor de Bakunin. Sua tese é conhecida como anarco-comunista e se fundamenta na abolição de todas as formas de governo, em favor de uma sociedade comunista regulada pela cooperação mútua dos indivíduos, em vez da oriunda das instituições governamentais. Essas idéias resultaram no surgimento do Marxismo, que, de socialismo científico, transforma-se em crítico do regime capitalista, tendo como base o materialismo histórico 8. Assim, em 1848, o Manifesto do Partido Comunista, de autoria dos alemães Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), afirma que o comunismo seria a etapa final da organização político-econômica humana. A sociedade viveria em um coletivismo, sem divisão de classes e sem a presença de um Estado coercitivo. Para chegar ao Comunismo, no entanto, os marxistas prevêem um estágio intermediário de organização, o Socialismo, que instauraria uma ditadura do proletariado para garantir a transição. Esses movimentos políticos também confrontam as práticas religiosas conduzidas pela Igreja Católica que, desviada dos princípios morais do estabelecimento de um império espiritual no coração dos homens, aproxima-se em demasia das necessidades políticas da nobreza reinante na Europa. Essa aproximação com o poder real trouxe conseqüências desastrosas, abrindo espaço a discussões sobre o papel desempenhado pela Igreja em particular, e pela religião, considerada como sinônimo de movimento religioso de igreja – católica ou reformada –, equívoco que ainda norteia o pensamento religioso da maioria dos europeus dos dias atuais. Nesse contexto, surge o Catolicismo Social, movimento criado por Lamennais, que buscava um ideal de caridade e de justiça, conforme os ensinos do Evangelho. Lamennais rompe com a Igreja e se torna abertamente socialista. Lacordaire e Mont´Alembert se submetem sem abandonar a ação generosa (caridade e justiça)11
Referências Bibliográficas:
1. AMORIM, Deolindo. O espiritismo e os problemas humanos. Rio de Janeiro: Mundo Espírita, 1948. Cap. 34, p. 170.
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2. ______. Transição inevitável. O espiritismo e os problemas humanos. São Paulo: USE, 1985, p. 23.
Transição Inevitável
As estruturas sociais também se esvaziam, com os regimes políticos, cedendo lugar a outras formas de convivência. Há um momento em que, não podendo mais suportar as tensões e a seqüência incontida das crises, terão de mudar ou adaptar-se a novas experiências. A semelhança do que se passa nos organismos biológicos, com as suas curvas de ascensão e declínio, também elas têm os seus ciclos históricos, porque se desgastam com os atritos, ficam desatualizadas e terminam perdendo a razão de ser. A própria evolução encarrega-se de provocar modificações, fazendo que uns tantos conceitos e costumes se tornem obsoletos. Conquanto haja necessidades básicas em qualquer tempo, assim como valores permanentes, como é o caso dos valores espirituais, cada momento histórico tem as suas idéias propulsoras, e seus problemas e reivindicações características, os seus centros de interesses.
As estruturas religiosas, por exemplo, embora sejam conservadoras por natureza, não podem manter certas posições por tempo indefinido, visto como, em suas relações temporais, estão sujeitas do mesmo modo, a ser envolvidas nas conjunturas sócio-políticas, porque não podem ficar acima dos problemas inerentes ao mundo terreno, a despeito de suas preocupações transcendentais. Dá-se, na ordem social,em relação a determinadas cúpulas políticas e religiosas, analogicamente falando o que se dá com um vaso em laboratório: quando não agüenta mais a temperatura crítica, ou fica no limite de capacidade, ou estoura. Algumas instituições podem dar a impressão de que os seus leneamentos externos sejam inalteráveis, mas não podem evitar a ebulição interna, porque os anseios de substituição, com o tempo se transformam em fermentação irreprimível. Começam assim, e a simples observação corrente bem o demonstra, todas as mudanças de efeitos mais decisivos nas organizações sociais, políticas, culturais,religiosas etc. É um fenômeno de defasagem natural, tomando-se o termo em sentido extenso e não apenas em seu contexto estritamente econômico, pois é verdade que toda estrutura debilitada, seja de que natureza for, tende a ser deslocada ou superada por outra ordem de idéias e problemas, para cuja solução a estrutura antiga não possui os instrumentos adequados. Muitas vezes, quando sobrevém a desintegração, certos elementos remanescentes são incorporados à nova ordem, podem até oferecer resistência às transformações, mas não conseguem contornar ou estancar a pressão fatal dos acontecimentos.
O apogeu e o crepúsculo das instituições é um fenômeno dos mais cediços na sociedade.Com esta perspectiva, que está no curso da História, podemos inferir, pela própria lógica das coisas, que o choque de forças ou de blocos, cada qual disputando a hegemonia política, econômica ou ideológica, levará o mundo não se sabe ainda por que meios, a uma situação nova. As divergências entre capitalismo e estatismo, entre individualismo e socialismo terão de chegar, forçosamente, a uma alternativa, da qual não poderão sair: ou encontrarão um meio de conciliação e "coexistência pacífica", transigindo em suas soluções radicais de parte a parte, ou terão de enfrentar o pior, que será o estado de saturação e, por fim, a luta de esfacelamento cujas conseqüências para a humanidade nem sequer poderão ser vislumbradas. Há certo receio ou temor dentro das forças em demanda, apesar de todo o aparelhamento material de que possam dispor, uma vez que não há segurança psicológica. No seio de alguns grupos, por exemplo, já se nota, através de atitudes bem significativas, uma espécie de reviravolta, no sentido de modificar posições até então irremovíveis.
3. AMARAL, Jesus S. F. [et al.]. Enciclopédia mirador internacional. São Paulo: 1995. (Revolução francesa), vol. 18. Item III, p. 9852-9859.
4. ______. (Revolução industrial), p. 9877-9881.
5. BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. 3. ed. Porto Alegre: Globo, 1975. Progresso intelectual e artístico durante a época da democracia e do nacionalismo, p. 661.
Como muitos outros movimentos artísticos dos tempos modernos, o impressionismo nasceu na França. Foi fundado aproximadamente em 1870 por Edouard Manet (1832-83), em quem deixara profunda impressão o estudo dos velhos mestres espanhóis, sobretudo de Velasquez. Os maiores de todos os impressionistas foram, provavelmente, Claude Monet (1840-1920) e Auguste Renoir (1841-1919). Monet foi talvez o principal expoente do novo modo de interpretar a paisagem. Seus quadros não têm plano ou desenho no sentido convencional; ao invés de retratar, sugerem sutilmente os contornos dos rochedos, das árvores, montanhas e campos. Profundamente interessado pelo problema da luz, saía de casa ao amanhecer com uma braçada de telas a fim de pintar o mesmo motivo sob uma dúzia de aspectos momentâneos. Já se disse, a respeito de uma de suas obras-primas, que "a luz é a única personagem importante do quadro". A obra de Renoir mostra uma variedade maior que a de qualquer outro de seus colegas. Seus assuntos incluem não somente paisagens mas também retratos e cenas da vida contemporânea. É sobretudo famoso pelos seus nus róseos e ebúrneos, pintados de um modo que lembra Ticiano ou Rubens. Usou ele o conhecido recurso das manchas de sol para dar maior relevo a certas partes do quadro, mas apresentava os seus temas com mais solidez de formas do que os outros componentes do grupo. É, até hoje, o mais popular dos impressionistas.
Por mais de vinte anos o impressionismo floresceu como estilo dominante de pintura em quase todos os países do Ocidente. Mas na década de 1890 cedeu a palma da popularidade a um novo movimento que é chamado, na falta de melhor nome, pós-impressionismo. Os pósimpressionistas criticavam a falta de forma e de volume na obra dos seus predecessores. Sustentavam que as figuras representadas pela pintura deviam ser tão sólida e completamente moldadas quanto as dos escultores. Censuravam, outrossim, a preocupação dos impressionistas com os aspectos ocasionais e momentâneos da natureza e deploravam-lhes a indiferença pelas idéias. Exprimir um sentido qualquer, na opinião deles, devia ser o propósito fundamental da arte; a forma e a técnica não são um fim em si mesmas, sendo importantes apenas na medida em que contribuem para exprimir um sentido. O pós-impressionismo não foi somente uma reação contra o impressionismo mas, pelo menos em suas tendências fundamentais, representava uma revolta contra as fórmulas rotineiras do passado. Era uma expressão do caos e da crescente complexidade da era da máquina. Simbolizava a inquietação e a desorientação que acompanharam o nascimento de uma nova sociedade nos últimos anos do século XIX. Foi o começo de quase tudo que chamamos arte moderna.
O pintor que lançou os fundamentos do pós-impressionismo foi Paul Cézanne (1839-1906), hoje saudado como um dos maiores pintores de todos os tempos. Natural do sul da França, Cézanne vagabundeou pelo mundo da arte como num sonho. Sempre esperançoso de alcançar um objetivo mais alto, pouco lhe interessavam as obras que havia terminado. O filho, para se distrair, recortava as janelas de algumas de suas obras-primas e a criada usava outras para limpar o fogão. Cézanne encarava essas calamidades com bastante calma, convicto de que no futuro produziria coisas muito melhores. O fim que almejava como pintor era representar de tal modo a natureza que os objetos, na tela plana, parecessem ter o relevo e a profundidade da escultura. Para consegui-lo recorria a leves deformações, aplicava a tinta em espessas camadas e modelava as figuras com um cuidado meticuloso. Foi tão bem sucedido que, segundo se disse, "depois de Cézanne não há mais razão para se fazer escultura".
Em confronto com todas as épocas precedentes, o período que vai de 1830 a 1914 assinala o apogeu do progresso científico. As conquistas desse período não só foram mais numerosas mas também devassaram mais profundamente os segredos das coisas e revelaram a natureza do mundo e do homem, projetando sobre ela uma luz até então insuspeitada.
Deu-se amplo desenvolvimento a cada um dos antigos ramos da ciência, ao mesmo tempo que mais de uma dezena de ramos novos eram acrescentados aos já existentes. O fenomenal progresso científico dessa época resultou de vários fatores. Deveu-se, até certo ponto, ao estímulo da Revolução Industrial, à elevação do padrão de vida e ao desejo de conforto e prazer. Encarar, porém, a ciência moderna como uma espécie de conhecimento essencialmente prático seria desconhecer-lhe a importância.
Um Einstein ou um Eddington não são menos alheios aos problemas da vida cotidiana do que o eram Santo Tomás de Aquino ou Alberto Magno. A ciência pura ocupa mesmo, na época moderna, uma posição algo semelhante à da escolástica no século XIII. É, ao mesmo tempo, um substituto da lógica como disciplina do espírito e a expressão de um insaciável desejo de conquista de todos os conhecimentos, de um domínio intelectual do universo. Os escolásticos empregavam métodos de todo diferentes, mas os seus objetivos e esperanças eram os mesmos.
Embora nenhuma das ciências tenha sido descurada entre 1830 e 1914, foram as ciências biológicas e a medicina que tiveram maior desenvolvimento. O feito mais notável da biologia foram as novas explicações dadas da teoria da evolução orgânica. Já vimos que esta teoria remonta pelo menos a Anaximandro, no século VI antes da era cristã, e que foi aceita por muitos dos grandes espíritos da antiguidade.
Sabemos também que ela foi renovada no século XVIII pelo filósofo Barão de Holbach, pelo poeta Goethe e pelos cientistas Buffon e Lineu. Nenhum desses homens, porém, apresentou provas suficientes nem explicou como funciona o processo da evolução. O primeiro a desenvolver uma hipótese sistemática da evolução orgânica foi o biólogo francês Jean Lamarck (1744- 1829). O princípio básico da hipótese de Lamarck, publicada em 1809, é o da hereditariedade dos caracteres adquiridos. Afirmava ele que um animal submetido a uma mudança de meio ambiente adquire novos hábitos que, por sua vez, se refletem em modificações estruturais. Esses caracteres adquiridos da estrutura orgânica, segundo acreditava Lamarck, são transmissíveis à descendência, donde resulta surgir, após uma série de gerações, uma nova espécie animal. Embora os seus sucessores tivessem encontrado poucos fatos para confirmar a hipótese, ela dominou o pensamento biológico durante mais de cinquenta anos. Não está totalmente desacreditada, mas não se lhe confere senão uma validade parcial.
Uma hipótese muito mais científica da evolução orgânica foi a de Charles Darwin, publicada em 1859. Darwin nasceu em 1809 e era filho de um médico da província. Embora tivesse chegado aos setenta e três anos, era de constituição fraca e durante a maior parte de sua vida adulta não parece ter gozado um só dia de saúde normal. Atendendo ao desejo do pai, começou a estudar medicina em Edimburgo, mas logo desistiu e foi cursar teologia em Cambridge. Naquela universidade dedicou o melhor de seu tempo à história natural e só conseguiu o décimo lugar na sua turma, entre os que não se candidataram às honras acadêmicas. Em 1831 obteve uma nomeação como naturalista sem vencimentos a bordo do navio Beagle, que se preparava para realizar uma expedição científica à volta do mundo. O cruzeiro durou quase cinco anos e deu a Darwin uma esplêndida oportunidade de entrar em contato direto com as múltiplas variedades da vida animal. Notou as diferenças entre a fauna das ilhas e as espécies correspondentes que habitam o interior dos continentes, e observou as semelhanças entre os animais vivos e os fósseis de espécies extintas encontrados no mesmo local. Foi um preparo magnífico para o trabalho ao qual dedicaria toda a sua vida. Ao voltar dessa viagem, leu por acaso o Ensaio sobre a população de Malthus e chamou-lhe a atenção a tese de que por toda a natureza nascem muito mais indivíduos do que os que podem sobreviver e, por conseguinte, os mais fracos devem perecer na luta pela subsistência. Finalmente, ao cabo de mais vinte anos de vastas e cuidadosas pesquisas, deu a público sua obra Origem das espécies, cuja influência sobre o pensamento moderno não foi provavelmente igualada pela de nenhum outro livro. A hipótese de Darwin, apresentada na Origem das espécies (1859), é conhecida como teoria da seleção natural. Significa esta expressão que é a natureza ou o meio que seleciona entre a descendência dos seres vivos aquelas variações que estão destinadas a sobreviver e perpetuar-se. Darwin salientava em primeiro lugar que os progenitores de cada espécie geram um número de descendentes maior do que o que pode sobreviver. Afirmava que, em resultado disso, trava-se entre a descendência uma luta pelo alimento, pelo abrigo, pelo calor e outras condições necessárias à vida. Nessa luta, certos indivíduos levam vantagem graças ao fator da variação, o que significa que não existem dois descendentes exatamente iguais. Alguns nascem fortes, outros fracos; alguns têm chifres maiores ou garras mais afiadas do que os seus irmãos, ou talvez uma coloração que lhes permite confundir-se melhor com o ambiente e assim enganar os inimigos. São esses membros mais favorecidos da espécie que saem vitoriosos na luta pela existência; quanto aos outros, são geralmente eliminados antes de atingirem a idade da reprodução. Embora admitisse, com Lamarck, que os caracteres adquiridos podem ser herdados, Darwin não os considerava de importância fundamental na evolução. Para ele, a variação e a seleção natural eram os fatores principais da origem das espécies. Em outras palavras, ensinava que os indivíduos dotados de características favoráveis transmitem as suas qualidades herdadas aos respectivos descendentes, através de incontáveis gerações, e que as sucessivas eliminações dos menos aptos farão surgir finalmente uma nova espécie. Deve-se salientar, em último lugar, que Darwin aplicava o seu conceito de evolução não só aos animais mas também ao homem. Na sua segunda grande obra, A ascendência do homem (1871), tentou demonstrar que a raça humana descende originalmente de algum antepassado simiesco, há muito tempo extinto, mas que foi provavelmente o tronco comum dos antropóides existentes e do homem.
A hipótese darwiniana foi desenvolvida e melhorada por vários biólogos que o sucederam. Cerca de 1890 o alemão August Weismann (1834-1914) rejeitou categoricamente a idéia de que os caracteres adquiridos pudessem ser herdados. Realizou experimentos com o fim de demonstrar que as células somáticas (isto é, do corpo) são essencialmente distintas das células reprodutoras e que de modo algumas modificações das primeiras poderiam afetar as segundas. Concluía, portanto, que as únicas qualidades transmissíveis à descendência são aquelas que já estavam presentes no plasma germinativo dos pais. Em 1901 o botânico holandês Hugo de Vries (1848-1935) publicou a sua célebre teoria das mutações, baseada em grande parte nas leis da hereditariedade descobertas pelo monge austríaco Gregor Mendel (1822- 84). Sustentava De Vries que a evolução não resulta de pequenas variações, como queria Darwin, mas de diferenças radicais ou mutações, que surgem em proporções mais ou menos definidas entre a descendência. Quando qualquer dessas mutações é favorável à sobrevivência num dado meio, os seus portadores saem naturalmente triunfantes na luta pela existência. Não só os descendentes desses indivíduos herdarão essas qualidades, mas de tempos a tempos aparecerão novos indivíduos mutantes, alguns dos quais ainda mais bem adaptados a sobrevivência do que os seus pais. Destarte pode surgir uma nova espécie dentro de um número limitado de gerações. A teoria das mutações de De Vries corrigiu um dos principais pontos fracos da hipótese darwiniana. São tão mínimas as variações que Darwin considerava como fonte das mudanças evolutivas que seria necessário um tempo incrivelmente longo para se produzirem novas espécies. De Vries tornou possível conceber a evolução como processando-se por saltos repentinos.
Depois da exposição e da comprovação da evolução orgânica, a conquista biológica mais importante foi, sem dúvida, o desenvolvimento da teoria celular. A estrutura celular das plantas já fora descrita por Robert Hooke no século XVII, mas estava reservado a um biólogo alemão, Theodor Schwann (1810-82), deduzir todas as consequências da descoberta de Hooke. Mostrou Schwann, por volta de 1835, que não só as plantas mas também os animais se compõem de células e que, salvo as formas mais simples, todos os seres vivos crescem e amadurecem pela divisão e multiplicação dessas diminutas unidades estruturais. Alguns anos depois descobriu-se que todas as células se compõem essencialmente da mesma substância, a que Hugo von Mohl (1805-72) deu o nome de protoplasma. Outro avanço importante da biologia nesse período foi o desenvolvimento da embriologia. O pai da moderna ciência embriológica foi o teuto-russo Karl Ernst von Baer (1792- 1876), que, aproximadamente em 1830, formulou a famosa lei da recapitulação. Essa lei, depois aperfeiçoada par Ernest Haeckel (1834- 1919), estabelece que, durante o período embrionário, cada indivíduo recapitula ou reproduz as várias fases importantes da evolução da espécie a que pertence.
A embriologia não foi o único ramo da biologia que se desenvolveu durante o século XIX. Os trabalhos de Schwann, von Mohl e outros conduziram à fundação da citologia, ou estudo científico das células. Mais ou menos em 1865, Louis Pasteur lançou as bases da ciência bacteriológica com o seu memorável ataque à teoria da geração espontânea. Até então supunha-se que as bactérias e outros organismos microscópicos se originassem espontaneamente da água ou de matérias animais e vegetais em decomposição. Pasteur logrou convencer o mundo científico de que todas as formas existentes de vida, por mais diminutas que sejam, só podem ser reproduzidas por seres vivos. Foi essa a sua famosa lei da biogênese (todas as formas conhecidas de vida provêm de uma vida preexistente). Ainda mais espetaculares do que as realizações no setor da biologia foram os progressos da medicina. Após o descobrimento da vacina contra a varíola, feito por Jenner em 1796, o seguinte passo importante no desenvolvimento da medicina moderna foi a introdução do éter como anestésico geral. A princípio atribuiu-se tal feito a William T. G. Morton, um dentista de Boston, mas sabe-se hoje que um médico da Geórgia, de nome Crawford W. Long, realizou em 1842 a primeira operação com o auxílio do éter. Essa descoberta não só diminuía os sofrimentos do paciente mas também permitia que o cirurgião agisse com mais calma e vagar, aumentando assim o número de operações bem sucedidas. Entretanto, muita gente continuava a morrer em consequência da técnica rudimentar dos médicos. Esse mal fazia-se sentir sobretudo na obstetrícia, até que se descobriram métodos para afastar a possibilidade de infecção. Em 1847 o médico húngaro, Ignaz Semmelweiss descobriu que, lavando as mãos numa solução antisséptica, podia reduzir de mais de quatro quintos o índice de mortalidade nas intervenções obstétricas. Por volta de 1865 o inglês Joseph Lister (1827-1912), que é considerado o pai da cirurgia antisséptica, estendeu essa prática a todo o campo cirúrgico. Logrou Lister sensacionais resultados na prevenção das infecções limpando as feridas e os instrumentos cirúrgicos com ácido fênico e empregando categute fenicado nas suturas cirúrgicas. Em 1883 foi recompensado pelo governo inglês com um título de nobreza e em 1897 elevado à dignidade de par do reino. O marco mais significativo do progresso da medicina na segunda metade do século XIX foi, sem dúvida, a teoria microbiana das doenças. Nenhuma outra conquista, provavelmente, contribuiu tanto como essa para o domínio das mais terríveis doenças que aflingem a humanidade. A teoria microbiana e obra, sobretudo, de Louis Pasteur e Robert Koch. Pasteur certificara-se, para todos os efeitos, da origem microbiana das doenças desde que havia estabelecido a sua lei da biogênese, mas não conseguira convencer a classe médica. Como fosse um químico, os médicos inclinavam-se a olhar os seus trabalhos com desprezo, certos de que ele nada podia saber dos sagrados arcanos da medicina. Admitiam a existência de micróbios, mas consideravam-nos mais como prováveis efeitos do que como causas das moléstias. O ensejo de provar a validade da teoria apresentou-se com o surto de uma epidemia de carbúnculo que estava matando centenas de milhares de vacuns e ovinos na Alemanha e na França. Cerca de 1875, Robert Koch (1843-1910), um obscuro médico provinciano da Prússia Oriental, iniciou uma série de experimentos para provar que o carbúnculo era causado pelos organismos microscópicos em forma de bastonetes, encontrados no sangue dos animais doentes. Injetou em camundongos esse sangue contaminado e observou que logo adoeciam e morriam. Fez culturas dos bacilos, alimentando-os com batatas, e verificou que eles por si sós, quando introduzidos nos organismos dos animais, eram tão mortais quanto o sangue. Entrementes, Pasteur também estivera entregue a pesquisas sobre o carbúnculo. Em 1881 foi desafiado pelos médicos seus inimigos a realizar uma demonstração pública com reses. Dividiu os animais em dois grupos. No primeiro inoculou bacilos enfraquecidos do carbúnculo e aos segundos deixou como estavam. Poucos dias depois injetou em todo o gado bacilos virulentos. Para confusão dos seus adversários, todos os animais que não tinham sido previamente inoculados morreram, enquanto todos os outros se salvaram. Impossível contestar, daí por diante, a teoria de que os micróbios eram a causa da moléstia. Uma vez positivamente estabelecida a teoria microbiana, as conquistas da medicina multiplicaram-se com rapidez. Os talentos de Pasteur e de Koch não estavam de modo algum exauridos. O primeiro criou, em 1885, um método de tratamento da hidrofobia, uma das mais horríveis doenças conhecidas pela humanidade. Como resultado desse feito, reduziu-se a menos de 1% o coeficiente de mortalidade de uma moléstia até então quase sempre fatal. Em 1882 Robert Koch descobriu os bacilos da tuberculose e da cólera asiática. No espaço de poucos anos foram isolados os germes de outras moléstias ainda, como a difteria, a peste bubônica, o tétano e a doença do sono. Produziram-se soros e antitoxinas para o tratamento de algumas dessas enfermidades, surgindo em primeiro lugar a antitoxina da difteria, descoberta em 1892 por Emil von Behring (1854- 1917). Já pelos fins do século puderam ser empregados meios eficientes de combate à malária e à febre amarela, graças ao descobrimento de que ambas são propagadas por certas variedades de mosquitos. Também foi grande o progresso no tratamento da sífilis. Após ter sido identificado o bacilo em 1905, August von Wassermann descobriu um reagente para revelar a sua presença no corpo humano. Em 1910 Paul Ehrlich conseguiu uma nova droga, conhecida como "salvarsan", que se revelou um específico eficaz contra a moléstia nas suas fases primária e secundária. Ainda mais tarde, o patologista austríaco Wagner von Jauregg descobriu que a febre determinada pela inoculação da malária ou por outros meios tem notáveis efeitos no tratamento de fases avançadas da doença, tais como a sífilis cerebral ou paralisia geral progressiva. Finalmente, é preciso salientar que ao deflagrar a Primeira Guerra Mundial já se havia iniciado o estudo das glândulas de secreção interna e das vitaminas. O primeiro passo para o conhecimento das glândulas de secreção interna ou endócrmas foi dado em 1901, quando o cientista japonês Takamine isolou a adrenalina segregada pelas glândulas supra-renais e demonstrou a sua utilidade na regulação do funcionamento do coração. Cerca de 1912, descobriu-se que a glândula pituitária produz uma substância de vital importância para o crescimento apropriado do corpo. Essas descobertas possibilitaram um desenvolvimento considerável, em tempos mais recentes, da terapia glandular, inclusive métodos para a cura de certas formas de idiotia pela administração de hormônios da glândula tireóide. Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial um bioquímico inglês demonstrou que uma alimentação sadia não requer apenas amiláceos, gorduras, açúcares e proteínas, mas também certos "fatores acessórios" encontrados somente em determinados alimentos. Esses fatores foram logo denominados vitaminas e iniciaram-se pesquisas com o fim de determinar-lhes a natureza. Em 1915 um cientista americano da Johns Hopkins University, E. V. McCollum, provou que existiam pelo menos duas vitaminas: a vitamina A, contida na manteiga, na gema de òvo e nos óleos de fígado de peixe, e a vitamina B, encontrada com mais abundância no fermento, nas carnes magras, nos cereais integrais e nas verduras. Investigações posteriores revelaram a existência de pelo menos três dessas misteriosas substâncias, todas elas essenciais ao crescimento e à prevenção das moléstias. O descobrimento das vitaminas revestiu-se de particular importância no tocante ao domínio das doenças de desnutrição, como o beribéri, o escorbuto e o raquitismo. O registro das conquistas das ciências físicas antes do último quartel do século XIX é, de certo modo, menos impressionante. Salientam-se, todavia, três conquistas desse período preliminar.
Por volta de 1810 John Dalton (1766-1844), um mestre-escola inglês da seita dos quacres, reatualizou a teoria atômica da matéria e defendeu-a com tal firmeza que não tardou a ser adotada como uma das premissas básicas do pensamento científico. Em 1847 Hermanri von Helmholtz (1821-94) formulou o princípio da conservação da energia ou a primeira lei da termodinâmica, baseando-se em descobertas anteriores do inglês James Joule (1818-89). Estabelece essa lei que a energia total do universo é constante, que pode passar de uma forma a outra mas não pode ser criada nem destruída. Em 1851 surgiu a segunda lei da termodinâmica, ou lei da dissipação da energia. Explicada sistematicamente pela primeira vez por William Thompson (Lord Kelvin), sustenta ela que, embora a energia total do universo permaneça invariável, a quantidade de energia útil diminui constantemente. Poucas descobertas têm tido influência mais fecunda sobre as conclusões dos astrônomos e também de alguns filósofos.
Será talvez lícito afirmar que o período compreendido entre cerca de 1870 e 1914 superou todos os demais, desde os tempos de Copérnico, quanto ao número de descobrimentos revolucionários nas ciências físicas. É mesmo de duvidar que tenha havido jamais um período em que tantas concepções científicas consagradas tenham sido tão vigorosamente atacadas ou destruídas. Em primeiro lugar, as teorias mais antigas sobre a luz, a eletricidade e a energia foram submetidas a uma extensa revisão. Por volta de 1865, Clerk Maxwell (1831-79) demonstrou que a luz parece comportar-se de modo bastante semelhante ao das ondas eletromagnéticas. Em 1887 o físico alemão Heinrich Hertz provou a existência de ondas elétricas de alta frequência a propagarem-se através do espaço com a velocidade e outros característicos da luz. O descobrimento do raio-X por Wilhelm von Röntgen, em 1895, levou os cientistas a indagar se raios semelhantes não se produziriam espontaneamente na natureza.
Essa suspeita foi confirmada pelo descobrimento do urânio em 1896 e, dois anos depois, de um elemento muito mais ativo, o rádio, por Madame Curie. Cerca de 1903 os físicos ingleses Ernest Rutherford e Frederick Soddy desenvolveram a teoria da desintegração, explicando como vários elementos radioativos se decompõem para formar elementos menos complexos, produzindo ao mesmo tempo emanações de energia elétrica. O resultado direto desses vários descobrimentos foi a conclusão de que a luz, a eletricidade, os raios-X e todas as demais formas de energia são essencialmente a mesma coisa.
Dessa conclusão era relativamente fácil passar a uma revisão completa do conceito de matéria. Já em 1892, Hendrik Lorentz arriscara a hipótese de que a matéria não é composta de átomos sólidos e indivisíveis como supunham os gregos e John Dalton, mas o próprio átomo é composto de unidades menores, de natureza elétrica. Cerca de 1910, Ernest Rutherford e o cientista dinamarquês Niels Bohr descreveram o átomo como uma espécie de sistema solar em miniatura, composto de um núcleo que contém um ou mais prótons carregados positivamente, e em torno do qual gira um certo número de elétrons carregados negativamente.
Como veremos, essa concepção foi modificada em época mais recente, mas ainda permanece de pé a sua ideia principal: a de que a eletricidade constitui a base da matéria.
O clímax da revolução nas ciências físicas foi alcançado com a publicação das teorias de Einstein. Originalmente expostas sob uma forma restrita em 1905, foram ampliadas e receberam aplicação mais geral dez anos depois. Einstein atacava não só as antigas concepções da matéria mas, a bem dizer, todo o edifício da física tradicional. A doutrina que lhe deu maior fama foi o princípio de relatividade. Durante a maior parte do século XIX os físicos tinham admitido como axioma que o espaço e o tempo eram absolutos. Supunha-se que o espaço estivesse preenchido por uma substância impalpável chamada éter, meio através do qual ocorria a transmissão dos movimentos vibratórios da luz. Os planetas também se moviam nele, como navios a seguir rotas definidas num vasto oceano. O movimento dos corpos celestes era, portanto, medido em relação a esse éter mais ou menos estacionário, exatamente como a velocidade de um veículo pode ser medida em função das distâncias vencidas numa estrada. Mas certas experiências complexas, realizadas por físicos ingleses e americanos em 1887, desacreditaram virtualmente a hipótese do éter. Einstein tratou então de reconstruir o plano do universo dentro de um arranjo completamente diferente. Sustentou que o espaço e o movimento, ao invés de serem absolutos, são relativos um ao outro. Os objetos não têm apenas três dimensões, mas quatro. Aos tradicionais comprimento, largura e espessura acrescentou Einstein a nova dimensão do tempo e representou todas as quatro como fundidas numa síntese a que deu o nome de "contínuo espaço-tempo". Procurava dessa forma explicar a ideia segundo a qual a massa depende do movimento. Corpos a mover-se com grande velocidade têm proporções diferentes de tamanho e peso das que teriam em repouso. Também está inclusa na física de Einstein a concepção de um universo finito — isto é, finito no espaço. O reino da matéria não se estende infinitamente, pois o universo tem limites.
Conquanto tais fronteiras não sejam de modo algum definidas, há pelo menos uma região além da qual nada existe. O espaço curva-se sobre si mesmo, de modo a fazer do universo uma esfera gigantesca dentro da qual estão contidas as galáxias, as estrelas, os sistemas solares e os planetas. O período entre 1830 e 1914 caracterizou-se também por um vasto desenvolvimento das ciências sociais. Muitas dessas matérias são de origem relativamente recente. Antes do século XIX, quase todos os esforços do homem para analisar o seu meio social restringiam-se à história, à economia e a filosofia. A primeira das novas ciências sociais a se desenvolver foi a sociologia, criada por Augusto Comte (1798-1857) e elaborada por Herbert Spencer (1820—1903). Segue-se a fundação da antropologia por James Prichard (1786-1848) e Sir Edward Burnett Tylor (1832-1917). Embora definida por vezes, vagamente, como a "ciência do homem", a antropologia é mais comumente restringida a assuntos como a evolução física do homem, o estudo dos tipos humanos existentes, das culturas pré-históricas e das instituições e costumes primitivos. Por volta de 1870 a psicologia desligou-se da filosofia e tornou-se uma ciência autônoma. Após a sua criação na Alemanha sob a orientação de Wilhelm Wundt (1832-1920), foi ela desenvolvida pelos americanos William James (1842-1910) e G. Stanley Hall (1846-1924). Na década de 1890, os trabalhos do russo Ivan Pavlov (1849-1936) imprimiram-lhe uma nova orientação. Graças a experimentos realizados em animais, descobriu Pavlov o chamado reflexo condicionado, uma forma de comportamento em que reações naturais são produzidas por um estímulo artificial. Mostrou ele que, acostumando-se um cão a ser alimentado imediatamente depois do soar de uma campainha, acaba reagindo a esse som com a segregação de saliva exatamente como se o experimentador lhe pusesse o alimento diante dos olhos ou lhe fizesse sentir o cheiro daquele. Essa descoberta sugeria a conclusão de que o reflexo condicionado é um elemento importante do comportamento humano e levou os psicólogos a concentrarem-se na experimentação fisiológica como chave do conhecimento dos mecanismos mentais.
7. RÉMOND, René. O século XIX. Tradução de Frederico Pessoa de Barros. 12. ed. São Paulo: Cultrix. Os componentes sucessivos, p. 13.
INTRODUÇÃO: OS COMPONENTES SUCESSIVOS
O século XIX, tal como os historiadores o delimitam, ou seja, o período compreendido entre o fim das guerras napoleônicas e o início do primeiro conflito mundial — uma centena de anos que se situam entre o Congresso de Viena e a crise do verão de 1914 — é um dos séculos mais complexos, mais cheios que
existem. Cuidaremos para não atribuir-lhe, retrospectivamente uma racionalidade que lhe seria estranha, mas um exame rápido permitirá a descoberta de algumas linhas mestras.
Um Século de RevoluçõesSem esquecer que as relações que a Europa mantém com o resto do mundo, entre 1814 e 1914, são dominadas por sua expansão e suas tentativas de domínio do globo, o traço mais evidente é a freqüência de choques revolucionários. Esse século, por direito, pode ser chamado o século das evoluções, porque nenhum — até agora — foi tão fértil em levantes, insurreições, guerras civis, ora vitoriosas, ora esmagadas. Essas revoluções têm como pontos comuns o fato de quase todas serem dirigidas contra a ordem estabelecida (regime político, ordem social, às vezes, domínio estrangeiro), quase todas feitas em favor da liberdade, da democracia política ou social, da independência ou unidade nacionais. É esse o sentido profundo da efervescência que se manifesta continuamente na superfície da
Europa, a que não ficou imune nenhuma parte do continente: tanto a Irlanda como a península ibérica, os Bálcãs como a França, a Europa Central e a Rússia, foram afetadas por essa agitação, uma ou mais vezes.Essa agitação revolucionária, a princípio, apresenta-se como um contragolpe à revolução de 1789; basta examinar as palavras de ordem, perscrutar-lhes os princípios para captarlhes a analogia. Contudo, todos esses movimentos revolucionários não se reduzem — talvez nenhum se reduza de modo total — a seqüelas da Revolução de 1789. À medida que o século se aproxima do fim, outras características se afirmam, passando pouco a pouco à frente da herança da Revolução Francesa.
Novos fenômenos, estranhos à história da França revolucionária, tomam um lugar crescente, colocam problemas novos, suscitam movimentos inéditos. É o caso da revolução industrial, geradora do movimento operário, do impulso sindical, das escolas socialistas. Surge um novo tipo de revolução, na
segunda metade do século XIX, que não se pode reduzir à repetição pura e simples dos movimentos revolucionários originados da posteridade de 1789.
Quatro Grandes Vagas
Pode-se introduzir alguma claridade no elevado número desses acontecimentos distinguindo diversas vagas sucessivas, que se sucedem.
1. Uma primeira vaga é composta dos movimentos liberais que se produzem em nome da liberdade, contra as sobrevivências ou os retornos ofensivos do Antigo Regime. É o caso da vaga insurrecional de 1830, na Europa Ocidental principalmente.
2. Uma segunda vaga é constituída pelas revoluções propriamente democráticas. Voltarei a falar sem pressa sobre a diferença de natureza entre as revoluções liberais e as revoluções democráticas; a distinção é fundamental e sua compreensão exige um esforço de imaginação, porque, nos meados do século XX, as palavras liberal e democrático não estão longe de se tornarem sinônimas (falamos correntemente das democracias liberais). Quando Jean Jacques Chevalier analisa o demo liberalismo, ele insiste sobre tudo o que há de indiviso entre a filosofia liberal e a filosofia democrática, mas esse ponto de vista é mais do século XX que do século XIX. Os contemporâneos eram mais sensíveis ao que diferencia, e mesmo opõe, o liberalismo à democracia e, por volta de 1830 ou 1850, as duas ideologias são até inimigas irreconciliáveis: a democracia é o sufrágio universal, o governo do povo, enquanto que o liberalismo é o governo de uma elite.
3. Uma terceira vaga de movimentos reivindica uma inspiração diferente: estes são os movimentos sociais que proporcionam às escolas socialistas seu programa e sua justificação. Antes de 1914, esses movimentos ainda são minoritários, e tomaremos o cuidado de não antecipá-los, não exagerando assim a importância que porventura tenham.
4. Enfim, o movimento das nacionalidades, que não se segue cronologicamente aos três precedentes, mas corre por todo o século XIX, constitui o último tipo de movimento. Ele procede da herança da Revolução, como vimos ao enumerar as consequências da Revolução sobre a ideia de nacionalidade; ele também é contemporâneo tanto dos movimentos liberais como das revoluções democráticas, e mesmo das revoluções sociais, e mantém com essas três correntes relações complexas, cambiantes, ambíguas, sendo ora aliado, ora adversário dos movimentos liberais, ou das revoluções democráticas e socialistas.
Eis, reduzida à sua anatomia, a história do século XIX, dominada por essas quatro forças distintas, essas quatro correntes que ora se sucedem e ora se combatem, embora todas entrem em conflito com a ordem estabelecida, com os princípios oficiais, as instituições legais, as idéias no poder, as classes dirigentes, o domínio estrangeiro.
É o conflito entre essas forças de renovação e os poderes estabelecidos que compõe a história do século XIX, que explica a violência e a freqüência dos choques. Esse confronto entre as forças de conservação, política, intelectual, social, e as forças de contestação fornece a chave da maior parte dos acontecimentos da história, tanto nacional quanto européia que, quase sempre, chegam às vias de fato, por que é excepcional que esse confronto se desenrole pacificamente pela aplicação de disposições previstas pela constituição: isso não se aplica à Grã-Bretanha e à Europa do Norte ou do Oeste, aos países escandinavos ou neerlandeses. Em todos os outros lugares o conflito é resolvido pelo recurso às soluções mais radicais, pelo uso da violência.
Os termos do confronto variam de acordo com o momento e de acordo com o país. Convém, portanto, passar do quadro geral para o exame das situações particulares.
8. LAGARDE, André et MICHARD, Laurent. XIXe Siècle. Les grands auteurs français du programme. Paris: Bordas, 1964. Introduction (Le mouvement démocratique), vol. 5, p. 7-8.
10. ______. (Le réalisme), p. 11.
11. ______. (Le socialisme), p. 8.
12. ______. (Le progrès scientifique et industriel), p. 9.
13. ______. Victor Hugo, p. 153.
14. XAVIER, Francisco Cândido. A caminho da luz. Pelo Espírito Emmanuel. 33. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2006. Cap. 21 (Época de transição), item: Os enciclopedistas, p. 185.
OS ENCICLOPEDISTAS
O século XVIII iniciou-se entre lutas igualmente renovadoras, mas elevados Espíritos da Filosofia e da Ciência, reencarnados particularmente na França, iam combater os erros da sociedade e da política, fazendo soçobrar os princípios do direito divino, em nome do qual se cometiam todas as barbaridades.
Vamos encontrar nessa plêiade de reformadores os vultos veneráveis de Voltaire, Montesquieu, Rousseau, D'Alembert, Diderot, Quesnay. Suas lições generosas repercutem na América do Norte, como em todo o mundo. Entre cintilações do sentimento e do gênio, foram eles os instrumentos ativos do mundo espiritual, para regeneração das coletividades terrestres. Historiadores há que, numa característica mania de sensacionalismo, não se pejam de vir a público asseverar que esses Espíritos estudiosos e sábios se encontravam a soldo de Catarina II da Rússia, e dos príncipes da Prússia, contra a integridade da França; mas, semelhantes afirmativas representam injúrias caluniosas que apenas afetam os que as proferem, porque foi dos sacrifícios desses corações generosos que se fez a fagulha divina do pensamento e da liberdade, substância de todas as conquistas sociais de que se orgulham os povos modernos.
15. ______. (A independência americana), p. 186.
A INDEPENDÊNCIA AMERICANA
As ideias nobilitantes dos autores da Enciclopédia e das novas teorias sociais haviam encontrado o mais franco acolhimento nas colônias inglesas da América do Norte, organizadas e educadas no espírito de liberdade da pátria do parlamentarismo.
O mundo invisível aproveita, desse modo, a grande oportunidade, deliberando executar nas terras novas os grandes princípios democráticos pregados pelos filósofos e pensadores do século XVIII. E enquanto a Inglaterra desrespeita, para com as suas colônias, o grande princípio por ela própria firmado, de que "ninguém deve pagar contribuições sem as ter votado", os americanos resolvem proclamar a sua independência política. Depois de alguns incidentes com a metrópole, celebram a sua emancipação em 4 de julho de 1776, organizando-se, posteriormente, a Constituição de Filadélfia, modelo dos códigos democráticos do porvir.
16. ______. Cap. 22 (A revolução francesa), p. 187.
A FRANÇA NO SÉCULO XVIII
A independência americana acendera o mais vivo entusiasmo no ânimo dos franceses, humilhados pelas mais prementes dificuldades, depois do extravagante reinado de Luís XV. O luxo desenfreado e os abusos do clero e da nobreza, em proporções espantosas, haviam ambientado todas as ideias livres e nobres dos enciclopedistas e dos filósofos, no coração torturado do povo. A situação das classes proletárias e dos lavradores caracterizava-se pela mais hedionda miséria. Os impostos aniquilavam todos os centros de produção, salientando-se que os nobres e os padres estavam isentos desses deveres. Desde 1614, não mais se haviam reunido os Estados-Gerais, fortalecendo-se, cada vez mais, o absolutismo monárquico.
De nada valera o esforço de Luís XVI convidando os Espíritos mais práticos e eminentes para colaborar na sua administração, como Turgot e Malesherbes. O bondoso monarca, que tudo fazia para reerguer a realeza de sua queda lamentável, em virtude dos excessos do seu antecessor no trono, mal sabia, na sua pouca experiência dos homens e da vida, que uma era nova começava para o mundo político do Ocidente, com transformações dolorosas que lhe exigiriam a própria vida.
Reunidos em maio de 1789 os Estados-Gerais, em Paris, explodiram os maiores desentendimentos entre os seus membros, não obstante a boa-vontade e a cooperação de Necker, em nome do Rei. Transformada a reunião em Assembleia Constituinte, precedida de numerosos incidentes, inicia-se a revolução instigada pela palavra de Mirabeau.
ÉPOCA DE SOMBRAS
Derrubada a Bastilha em 14 de julho de 1789 e após a célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, uma série de reformas se verifica em todos os departamentos da vida social e política da França. Aquelas renovações, todavia, preludiavam os mais dolorosos acontecimentos. Famílias numerosas aproveitavam a trégua, buscando o acolhimento de países vizinhos, e o próprio Luís XVI tentou atravessar a fronteira, sendo preso em Varenas e reconduzido a Paris.
Um mundo de sombras invadia as consciências da França generosa, chamada,
17. ______. (Contra os excessos da revolução), p. 189.
CONTRA OS EXCESSOS DA REVOLUÇÃO
A Revolução Francesa, desse modo, foi combatida imediatamente pelas outras nacionalidades da Europa, que, sob a orientação de Pitt, Ministro da Inglaterra, sustentaram contra ela, e por largos anos, uma luta de morte.
A Convenção Nacional, apesar das garantias que a Constituição de 1791 oferecia à pessoa do Rei, decretou-lhe a morte na guilhotina, verificando-se a execução aos 21 de janeiro de 1793, no local da atual Praça da Concórdia. Em vão, tenta Luís XVI justificar sua inocência ao povo de Paris, antes que o carrasco lhe decepasse a cabeça. As palavras mais sinceras afluem-lhe aos lábios, suplicando a atenção dos súditos, numa onda de lágrimas e de sentimentos que lhe burburinhavam no coração, não obstante a sua calma aparente. Renovam-se as ordens aos guardas do cadafalso e rufam os tambores com estrépito, abafando as suas afirmativas.
A França atraía para si as mais dolorosas provações coletivas nessa torrente de desatinos. Com a influência inglesa, organiza-se a primeira coligação europeia contra o nobre país. Mas, não somente nos gabinetes administrativos da Europa se processavam providências reparadoras. Também no mundo espiritual reúnem-se os gênios da latinidade, sob a bênção de Jesus, implorando a sua proteção e misericórdia para a grande nação transviada. Aquela que fora a corajosa e singela filha de Domrémyvolta ao ambiente da antiga pátria, à frente de grandes exércitos de Espíritos consoladores, confortando as almas aflitas e aclarando novos caminhos. Numerosas caravanas de seres flagelados, fora do cárcere material, são por ela conduzidos às plagas da América, para as reencarnações regeneradoras, de paz e de liberdade.
18. ______. (Napoleão Bonaparte), p. 192-193.
NAPOLEÃO BONAPARTE
O humilde soldado corso, destinado a uma grande tarefa na organização social do século XIX, não soube compreender as finalidades da sua grandiosa missão. Bastaram as vitórias de Árcole e de Rívoli, com a paz de Campoformio, em 1797, para que a vaidade e a ambição lhe ensombrassem o pensamento.
A expedição ao Egito, muito antes de Waterloo, assinalava para o mundo espiritual a pouca eficácia do seu esforço, considerado o espírito de orgulho e de imperialismo que predominou nas suas energias transformadoras. Assediado pelo sonho de domínio absoluto, Napoleão foi uma espécie de Maomé transviado, da França do liberalismo. Assim como o profeta do Islã pouco se aproximara do Evangelho, que a sua ação deveria validar, também as
19. ______. Cap. 23 (Depois da revolução), p. 196.
DEPOIS DA REVOLUÇÃO
Afastado Napoleão dos movimentos políticos da Europa, adotam-se no Congresso de Viena, em 1815, as mais vastas providências para o ressurgimento dos povos europeus. A diplomacia realiza memoráveis feitos, aproveitando as dolorosas experiências daqueles anos de extermínio e de revolução.
Luís XVIII, conde de Provença, irmão de Luís XVI, é reposto no trono francês, restabelecendo-se naquela mesma época antigas dinastias. Também a Igreja é contemplada no grande inventário, restituindo-se-lhe os Estados onde fundara o seu reino perecível.
Um sopro de paz reanima aquelas coletividades esgotadas na luta fratricida, ensejando a intervenção indireta das forças invisíveis na reconstrução patrimonial dos grandes povos. Muitas reformas, porém, se haviam verificado após os movimentos sanguinolentos iniciados em 89. Mormente na França, semelhantes renovações foram mais vastas e numerosas. Além de se beneficiar o governo de Luís XVIII com as imitações do sistema inglês, vários princípios liberais da Revolução foram adotados, tais como a igualdade dos cidadãos perante a lei, a liberdade de cultos, estabelecendo-se, a par de todas as conquistas políticas e sociais, um regime de responsabilidade individual no mecanismo de todos os departamentos do Estado. A própria Igreja, habituada a todas as arbitrariedades na sua feição dogmática, reconheceu a limitação dos seus poderes junto das massas, resignando-se com a nova situação.
20. ______. (Allan Kardec e os seus colaboradores), p. 197.
ALLAN KARDEC E OS SEUS COLABORADORES
O século XIX desenrolava uma torrente de claridades na face do mundo, encaminhando todos os países para as reformas úteis e preciosas. As lições sagradas do Espiritismo iam ser ouvidas pela Humanidade sofredora. Jesus, na sua magnanimidade, repartiria o pão sagrado da esperança e da crença com todos os corações.
Allan Kardec, todavia, na sua missão de esclarecimento e consolação, fazia-se acompanhar de uma plêiade de companheiros e colaboradores, cuja ação regeneradora não se manifestaria tão somente nos problemas de ordem doutrinária, mas em todos os departamentos da atividade intelectual do século XIX. A Ciência, nessa época, desfere os voos soberanos que a conduziriam às culminâncias do século XX. O progresso da arte tipográfica consegue interessar todos os núcleos de trabalho humano, fundando-se bibliotecas circulantes, revistas e jornais numerosos. A facilidade de comunicações, com o telégrafo e as vias férreas, estabelece o intercâmbio direto dos povos. A literatura enche-se de expressões notáveis e imorredouras. O laboratório afasta-se definitivamente da sacristia, intensificando as comodidades da civilização. Constrói-se a pilha de coluna, descobre-se a indução magnética, surgem o telefone e o fonógrafo. Aparecem os primeiros sulcos no campo da radiotelegrafia, encontra-se a análise espectral e a unidade das energias físicas da Natureza. Estuda-se a teoria atômica e a fisiologia assenta bases definitivas com a anatomia comparada. As artes atestam uma vida nova. A pintura e a música denunciam elevado sabor de espiritualidade avançada.
A dádiva celestial do intercâmbio entre o mundo visível e o invisível chegou ao planeta nessa onda de claridades inexprimíveis. Consolador da Humanidade, segundo as promessas do Cristo, o Espiritismo vinha esclarecer os homens, preparando-lhes o coração para o perfeito aproveitamento de tantas riquezas do Céu.
21. ______. (As ciências sociais), p. 198-199.
AS CIÊNCIAS SOCIAIS
O campo da Filosofia não escapou a essa torrente renovadora. Aliando-se às ciências físicas, não toleraram as ciências da alma o ascendente dos dogmas absurdos da Igreja. As confissões cristãs, atormentadas e divididas, viviam nos seus templos um combate de morte. Longe de exemplificarem aquela fraternidade do Divino Mestre, entregavam-se a todos os excessos do espírito de seita. A Filosofia recolheu-se, então, no seu negativismo transcendente, aplicando às suas manifestações os mesmos princípios da ciência racional e materialista.
Schopenhauer é uma demonstração eloquente do seu pessimismo e as teorias de Spencer e de Comte esclarecem as nossas assertivas, não obstante a sinceridade com que foram lançadas no vasto campo das ideias.
A Igreja Romana era culpada de semelhantes desvios. Dominando a ferro e fogo, conchegada aos príncipes do mundo, não tratara de fundar o império espiritual dos corações à sua sombra acolhedora. Longe da exemplificação do Nazareno, amontoara todos os tesouros inúteis, intensificando as necessidades das massas sofredoras. Extorquia, antes de dar, conservando a ignorância em vez de espalhar a luz do conhecimento.
D'Alembert - https://pt.wikipedia.org/wiki/D'Alembert
Diderot - https://pt.wikipedia.org/wiki/Diderot
Montesquieau - https://pt.wikipedia.org/wiki/Montesquieu
Quesnay - https://pt.wikipedia.org/wiki/Quesnay
Rosseau - https://pt.wikipedia.org/wiki/Rosseau
Voltaire - https://pt.wikipedia.org/wiki/Voltaire